segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Vida sem cor




      Tenho uma vizinha que, como minha avó dizia: “não pode ver defunto sem chorar”. A mulher tem uma atração por velórios e enterros que nunca entendi. Pelo que ela mesmo conta, chora de verdade, com sentimento, mesmo que jamais tenha visto o morto (ou a morta ) quando era vivo.
      É daquelas mulheres que participa de novenas, sabe rezar missas  -  acho que até melhor do que o padre.
      Como as capelas mortuárias ficam uma ao lado da outra, os fins de semana de dona Zica são muito agitados. Conhecida por todos os funcionários das capelas ela tem trânsito livre nos serviços de velório, missas de corpo presente, enterros e, ainda, recebendo condolências como se fosse parente do falecido.
      Soube que em alguns desses eventos familiares não aceitam aquela participação inoportuna, mas ela se afasta daqueles ingratos e vai ao próximo extinto, com a mesma disposição.
      Dona Zica, que deve estar pelos oitenta anos, mora sozinha e poucas pessoas sabem da sua vida. Quando nova foi parteira
e benzedeira e, ao que se sabe, nunca casou.
      Meus afazeres e compromissos deixam pouco tempo para eu  parar e, quando estou em casa estou envolvida em minhas tarefas.  Notei, semana passada, que minha vizinha não passava como sempre, nas manhãs, a caminho de um dos seus misteres. Perguntando sobre ela contaram-me que dona Zica tivera um AVC. Só então fiquei sabendo um pouco da vida daquela simplória mulher, quase “ uma sombra “ e que algumas pessoas chamam, jocosa mente, de Zica Papa-Defunto.
      Nascida no interior veio, ainda menina para a capital trabalhar como doméstica. Humilde, analfabeta e explorada, a adolescente Isabel perdeu o pouco que tinha – inclusive o nome que mudaram para “Zica”. Cuidou da casa e dos filhos dos patrões, sem jamais receber um salário, pois como dizia a benemérita patroa: “casa, comida e roupa lavada valem mais que ordenado”. Esqueceram, porém, do respeito, carinho e consideração.


     Zica deixara na cidadezinha pequena família composta de uma avó, pais e um irmão. Como não sabiam ler,  jamais houve uma carta entre eles para relatar o que acontecia nas vidas simples e sofridas, lado a lado.  
     Alguns anos depois, Zica por acaso conseguiu notícias dos parentes – péssimas notícias, aliás.  Em um trágico acidente, quando voltavam de um mutirão numa fazenda, morreram todos os colonos que viajavam no caminhão. Entre eles, toda a sua pequena  família. Quando soube do fato já havia passado muito tempo. Não podia fazer nada.
      Sem poder chorar, velar ou enterrar seus mortos, nossa sofrida personagem adotou todos os mortos que, para ela, representavam seus entes queridos aos quais não pode assistir. Surgiu, então o hábito de visitar os velórios de estranhos.
      Com o passar dos anos, Zica ficou mais esperta, procurou outros patrões que a valorizaram e seguiu sua vida, com mais dignidade. No entanto, o hábito de freqüentar velórios foi se tornando uma mania e houve, mesmo, quem a chamasse para “benzer” um parente morto, o que ela fazia compenetradamente.
     Pelo que ouvi, jamais alguém soube de qualquer namorado. Seu envolvimento era unicamente a dedicação e respeito que tinha pelos “seus” mortos, pois em cada uma daquelas criaturas Zica pranteava um dos parentes que não pudera chorar.
     Sensibilizada fiquei sabendo que minha estranha vizinha, depois de sofrer o AVC estava residindo num asilo. Hoje, tenho mais uma atividade: sou voluntária desse Asilo e pretendo levar muita atenção e carinho para Dona Zica , talvez eu consiga amenizar minha consciência por não haver-lhe dado atenção, antes.


Autora: Ivonita Di Concílio

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